quinta-feira, setembro 30, 2004


«A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.» - António Lobo Antunes Posted by Hello

quarta-feira, setembro 29, 2004

A malta fixe - o individualismo solúvel agora em saquetas individuais

A sociedade vive um problema grave de confusão e de falta de identificação. Assusta-me perceber que, na nova geração, todos são iguais. É assustador! É a clonagem na sua face social e não científica. Todos se vestem do mesmo modo, andam do mesmo modo, usam os mesmos vocábulos, frequentam os mesmos lugares, adoram os mesmos ídolos... tudo de acordo com a etiqueta do 'fixe'.
O fenómeno não é apenas nacional, mas global. Penso que chegámos a um ponto de excessiva identificação com a sociedade, ao ponto de o indíviduo se dissolver na mesma, perdendo os seus traços mais singulares.
Houve uma época em que ser 'fixe' (não nestes termos, mas com o mesmo significado) era ter algo de único, que distinguisse esse indivíduo da restante sociedade. Fulano era 'fixe' porque era diferente. Ser 'outsider' era ser 'fixe' porque ser 'outsider' era ser diferente. Mas a situação chegou a um ponto em que todos são 'outsiders' para serem 'fixes' e, agora, ser 'outsider' ´já não tem nada de diferente.
É uma geração por vezes inconformada, é verdade. Mas é também uma geração desumanizada. Os amigos já não conversam; os amigos agora 'teclam'. Quando um amigo diz algo engraçado, o outro não solta uma gargalhada mas sim um cibernético 'lol'. Os amigos não dizem que gostam um do outro; fazem (L) no msn e surge um coração. Fica tudo dito.
É de lamentar que o ser humano já não se esforce por manter a sua individualidade, já não queira marcar a diferença. Conformado, o ser humano entregou-se a uma sociedade sufocante que acabou por engoli-lo e misturá-lo no bolo alimentar onde estão todos os outros.
Os miúdos são todos Pedros, Tiagos ou Joões; as miúdas são todas Anas, Catarinas e Joanas. Vêem todos os mesmos filmes, ouvem todos a mesma música e lêem todos os mesmos livros (quando lêem). Prenderam-se todos a uma cultura mainstream e aceitam-na com uma passividade assustadora.
Há excepções, felizmente. Mas falo agora da maioria, a maioria que assusta. A maioria que vive cada vez mais para as aparências e para as marcas, rendida a um mundo cada vez mais consumista.
O puto até pode ser um estúpido com o QI abaixo de zero, mas se os pais lhe compram o último modelo da Nike e se no leitor de mp3 só tem Limp Bizkit e afins... o puto é um fixe!
Fica aqui a memória saudosa da época em que sobressaías pela diferença, em que ser único não era ser 'betinho'. Fica aqui a esperança de que, num destes dias, a humanidade acorde a perceba que atravessa uma fase crucial e que deve soltar as amarras, deixar as marcas e fazer a sua própria marca. Deixar de ser o gajo para ser o indivíduo...

segunda-feira, setembro 27, 2004

Informados mas mal formados

A alternativa a uma depressão nervosa é deixar de andar informada. Parar, definitivamente, de ver/ ler/ ouvir jornais. O mal nem está só na notícia que divulgam (na maioria são só desgraças, porque o sangue humano é coisa que vende bem) mas sim no modo como as divulgam.
Como é que é possível que os jornalistas, veículos de informação e até formação de todo um povo, não tenham o conhecimento mínimo nem sequer da sua própria língua?!
Nem vou a casos concretos mas acho que nunca vi/ li/ ouvi um jornal inteiro sem erros dos mais graves. Em termos de televisão, permitam-me opinar, não há pior do que a TVI. É incrível como as pessoas vêem aquele jornal. Não ficamos informados correctamente sobre o que realmente interessa e, mesmo com aquelas notícias da treta, não conseguem usar um português decente. Os erros vão dos mais simples aos mais graves erros de conjugação verbal ("haviam"???), sintaxe, morfologia e até erros de regências e concordâncias.
No que se refere à imprensa escrita, os tablóides lideram a tabela dos piores. O mais grave desta situação toda é o facto de tanto a TVI como os jornais acima referidos serem os mais vistos e lidos pela população portuguesa. O que é que se passa nessas cabeças??
Para piorar a situação, somos o país da União Europeia que menos lê jornais! De acordo com a APCT (Associação Portuguesa de Controlo de Tiragens), a média europeia situa-se nos 205 jornais por cada mil habitantes com mais de 15 anos (dados de 2001). Para citar alguns casos, na Finlândia, 444 em cada mil habitantes compra o jornal diariamente; na Áustria, 300 pessoas fazem o mesmo; no Reino Unido o número desce para 298 e na França para os 136. Mas até a Grécia lê mais jornais do que nós: 63 exemplares vendidos diariamente, por cada mil habitantes, contra os nossos míseros 50 exemplares.
É claro que há sempre aquele portuga optimista que diz que lê o jornal do amigo e assim já conta mais um ou que lê na internet. Não lhe tiro uma certa razão. Mas a verdade é que a situação continua a ser vergonhosa e escandalosa. Se é para lerem o "24 horas", leiam antes o tio patinhas que é mais educativo!
Mas enfim... já estou a afastar-me do assunto principal: a desgraça em que, pelo bem das sagradas audiências, se tranformaram alguns dos nossos meios de comunicação.
Não quero ensinar ninguém porque nem me sinto muito preparada para tal (mas que tanto eu como a maioria das pessoas com quem convivo percebe mais de português que os senhores jornalistas, não há dúvida nenhuma!). Mesmo assim, aproveito este espaço para explicar que:

- Diz-se abundar em e não abundar de;
- Diz-se aceder a e não aceder em;
- Diz-se apelar para e não apelar a;
- Diz-se chamar a atenção para e não chamar a atenção sobre;
- Diz-se desinteressar-se de e não desinteressar-se em;
- Diz-se discordar de e não discordar com;
- Diz-se desistir de e não desistir em;
- Diz-se embater em e não embater contra;
- Diz-se optar por e não optar em;
- Diz-se recusar-se a e não recusar-se em.

Por agora, fico por aqui. Não quero massacrar mais a cabeça dos que ainda têm paciência para ler isto.
Mas sei que voltarei a este assunto porque é das coisas que mais me entristece neste pequeno país: nem os portugueses falam português. Nem aqueles que nos devem informar são sequer bem formados.

domingo, setembro 26, 2004


Salvador Dalí - O Sonho (1931) Posted by Hello

sexta-feira, setembro 24, 2004

A importância dos Amigos

Foi um Amigo que, num momento em que a amiga inspiração não me ligava, me disse que escrevesse sobre a importância dos Amigos. Aceitei de imediato a sua sugestão mas só depois me apercebi da complexidade de abordar um tema como este, sem cair no ridículo de usar lugares-comuns ou frases rebuscadas.
Não pensem que vou falar de pessoas com quem convivo diária ou quase diariamente mas sim de pessoas que, mesmo que eu só veja uma vez por mês (o que é uma tristeza mas pode acontecer) são aquelas pessoas com quem sentimos que passamos os dias inteiros. Felizmente, tenho o privilégio de ter pessoas assim na minha vida... pessoas com quem falo como se estivesse só a pensar alto, que não me censuram quando cometo erros, que não me gozam quando digo disparates. Pessoas que não hesitam em oferecer-me ajuda quando preciso, mesmo que ajudar-me vá dificultar a vida delas. Pessoas que dão e recebem sem se sentirem forçados a agradecer ou desculpar-se. Pessoas que entram na nossa vida sem darmos conta, que se acomodam nela sem o mínimo risco de se tornarem incómodos e que nela permanecem sem terem que se esforçar para que isso aconteça. Pessoas que são minhas amigas porque sim e não porque numa ocasião ou outra lhes era conveniente que o fossem.
A Amizade é provavelmente um dos sentimentos mais debatidos e mencionados de todos os tempos. No entanto, defini-lo apresenta-se uma tarefa das mais complicadas. Mas também... geralmente, nem é necessário defini-la; basta senti-la. E quem não a sente não é mais do que uma pessoa pobre de espírito que vagueia no Mundo sem ser capaz de deixar qualquer rasto atrás de si. Fazer um Amigo na vida é o suficiente para que essa vida não tenha sido em vão. Há uma marca nossa que fica na memória de outro ser humano e que, não se perpetuando, pois ele não é eterno, atinge na efemeridade a sua plenitude.
Às vezes acusam-me de fazer uma distinção excessiva entre Amigos, conhecidos e colegas. A verdade é que não o faço por considerar uns melhores pessoas que outros mas sim porque não consigo fazer as coisas de outra forma. Essa distinção que faço, e que leva a que o pódio dos Amigos seja reservado a muito poucos, é apenas a expressão verbal do lugar que cada um ocupa no meu coração.
Se a prática da amizade não me falha, esses meus Amigos sabem que o são e o lugar que cada um deles tem no meu coração. Às vezes quase quebro uma das regras da amizade e tenho vontade de pedir desculpa por não estar mais tempo com eles ou de não lhes dar mais atenção. Contenho-me porque sei que abriria um precedente para que gozassem comigo e me acusassem de não cumprir a tal regra: um Amigo, com a maiúscula mais do que propositada, nunca precisa de pedir desculpa.
Amigos, os telemóveis e a internet são uma excelente invenção (até porque, de outro modo, teria que escrever isto e enviar por correio a todos) mas é por vossa causa que muitas vezes desejo que nunca tivessem sido inventados. Sim, é verdade, ficamos mais facilmente em contacto. Mas, bolas!, eu quero é estar convosco ao vivo, olhar-vos nos olhos para não ter que fazer smileys no msn ou usar das palavras em demasia! Eu quero é estar convosco porque vocês são a melhor companhia do mundo e (como não podia deixar de ser, não vou terminar este texto sem dizer um lugar-comum) são a família que eu escolhi. E esses laços são tão importantes como os de sangue.

quarta-feira, setembro 22, 2004


Young Tormented Girl - Pablo Picasso, 1939 Posted by Hello


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Fernando Pessoa

segunda-feira, setembro 20, 2004


Condition Humaine - Magritte Posted by Hello

domingo, setembro 19, 2004

Quando a poesia nos desenha a alma nas palavras

CÂNTICO NEGRO

Vem por aqui – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: vem por aqui!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam os meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: vem por aqui?
(...)

Se vim ao Mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas.
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
(...)

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: vem por aqui!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí!

José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo