Um exemplo
Para aqueles que não conhecem Lobo Antunes (e são bastantes as que conheço nessa situação), deixo aqui um exemplo de uma das muitas crónicas que o autor já escreveu. Não é sequer das minhas preferidas, é apenas um exemplo. Um exemplo da escrita genial de um autor português, amado por uns e odiado por outros. Até aceito que não gostem; desconhecê-lo é que é uma grande perda.O fim do mundo
Isto pode ter acabado mas não sou tão parvo que vá chorar à tua frente. Pelo contrário: apareço-te com um sorriso como se não fosse nada, sento-me à mesa, ponho o guardanapo ao pescoço por causa dos salpicos na camisa
(a minha mãe, coitada, que já vê mal, vê-se grega com as nódoas)
digo
-Boa noite Manuela
e como a sopa até ao fim, a falar disto e daquilo, sem dar a entender que estou triste, que tenho um nó na garganta, que sinto a minha vida em cacos porque juro-te que não sou tão parvo que vá chorar à tua frente. Tu levantas-te, tiras-me a colher, pões o meu prato em cima do teu, trazes o arroz de coelho da cozinha e eu a abrir uma garrafa de cerveja que às vezes sempre ajuda um bocadinho a dissolver a tristeza e o nó na garganta e enquanto me sirvo do arroz fico à espera que me fales do Carlos.
No fundo pode ser que a culpa seja minha por adiar constantemente o casamento contigo, vir aqui às segundas e às quintas e ir-me embora à uma da manhã com a desculpa de que a velhota precisa da minha ajuda, que com a idade deixa a porta aberta e se esquece do gás, que sou filho único e só me tem a mim quando a verdade é que os compromissos me assustam, me assusta a ideia de quereres ter crianças
(não tenho jeito nenhum para crianças)
e com tantas desculpas e tantos adiamentos era mais que certo que acabavas por te cansar e se não fosse o Carlos era outro, o Carlos pelo menos é um rapaz sossegado, gosta de ti, a mãe dele é quinze anos mais nova do que a minha e tem uma saúde de ferro e uma mulher não pode passar a vida inteira à espera que um fulano se decida, passar a maior parte das noites sem companhia, a ver vídeos na televisão, uma mulher precisa de companhia, de conversar, de um homem para tomar conta e eu não sirvo para isso, Manuela, levo o serão a olhar para o relógio com receio de perder o barco, despeço-me à pressa com um beijo na testa, telefono de fugida do emprego até que na semana passada me avisaste
-Preciso imenso de falar contigo
e eu entendi que me querias explicar que o Carlos estava disposto a dar-te o que eu nunca te dei, que não ligava com o teu feitio ficares sozinha, ires sozinha à praia, ires sozinha ao cinema, aguentar as anginas sem ninguém ao pé, oiço a minha voz
-O coelho está óptimo
farto de saber que não era isso que tu querias ouvir, farto de saber que o que querias ouvir era
-Eu caso-me contigo esquece o Carlos
mas não consigo, não sou capaz, gosto de ti e no entanto não me vejo, percebes, a viver contigo, o amor é uma coisa tão esquisita Manuela, garanto-te que tenho amor por ti, garanto-te que adorava pegar-te na mão
-Eu caso-me contigo esquece o Carlos
e as palavras não saem, tu à espera e as palavras não saem, tu a garantires-me em silêncio
-Se ficares quero lá saber do Carlos
e tudo o que sou capaz, que idiotice, é elogiar-te o coelho em lugar de elogiar-te a ti, te pegar na mão, te jurar
-Amo-te
porque te amo, porque não conheço quem faça macramé tão bem, quem tenha a casa tão limpa, a roupa tão asseada, nem um grão de pó na mobília, não conheço quem me trate como tu me tratas, acho que o Carlos tem uma sorte danada, acho que vou sentir a tua falta a doer-me cá dentro e todavia não sou tão parvo que vá chorar à tua frente, falo contigo como se não fosse nada, enfio o guardanapo na argola, levanto-me, abotoo o casaco e tu
-Preciso imenso de falar contigo
eu, que não sou tão parvo que vá chorar à tua frente, a agarrar a maçaneta da porta
-Amanhã amanhã
sabendo perfeitamente que não vou vir amanhã, que não vou vir nunca mais, que se viesse encontrava a mesa posta e o Carlos sentado no meu lugar a comer o meu arroz de coelho e a propor-te
-Vamos tratar da papelada no registo
sabendo perfeitamente que daqui a dois ou três meses vou espreitar ao jardim da Gulbenkian, e lá estarão vocês e os padrinho a tirarem fotografias junto à estátua, junto ao lago, e pode ser que me vejas, Manuela, que me distingas no meio dos arbustos, pode ser que olhes para mim como agora olhas
-Preciso imenso de falar contigo
só que não dirás nada porque é tarde, não podes passar o resto da vida a ires sozinha à praia, ao cinema, a aguentar as anginas sem ninguém ao pé, talvez me acenes, talvez eu te acene e apanhe logo o autocarro porque a velhota necessita de mim, com a idade deixa a porta aberta e esquece-se do gás, ao entrar a minha mãe, preocupada
-Vens pálido Jorginho
eu muito depressa
-Não é nada mãe
e sento-me no quintal das traseiras até ser noite e sem chorar, claro, não sou tão parvo que comece a chorar, que mariquice chorar, eu não choro, não penses que choro, não choro, sento-me no quintal das traseiras a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas.
4 Comentários:
Bem, nada a dizer. Bom, muito bom. A coisa que mais me impressionou foi o ritmo de escrita, ou pelo menos aquele frio que se sente ao querer galopar linha após linha para chegar ao fim e ver como isto acaba. Isso mostra que o escritor consegue incutir alguma tensão no leitor e é isso que diferencia aqueles que escrevem daqueles que escrevem bem...deixa-me lá ler isso, venha daí esse livro! Ele é bom Vera, tinhas razão.
Muita angústia...é do que eu gosto. Agora tenho mesmo que comprar algo do "Hannibal".
Missão cumprida! Com vocês os dois foi fácil, bastou uma crónica para vos convencer. Ou não fossem vocês duas pessoas cheias de bom senso... ;) Agora espero que comecem a lê-lo... o prazer é todo vosso!!
Ah... afinal não me importo assim tanto que lhe chames hannibal, João. Gosto de ver o lado mais 'lírico' e metafórico das coisas: ele devora as pessoas com a sua escrita, pelo modo com os seus retratos são absorventes, parece que se fixa numa personagem e a consome nas palavras. Assim sendo, permito que o trates assim... lol
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