sexta-feira, outubro 15, 2004

Um exemplo

Para aqueles que não conhecem Lobo Antunes (e são bastantes as que conheço nessa situação), deixo aqui um exemplo de uma das muitas crónicas que o autor já escreveu. Não é sequer das minhas preferidas, é apenas um exemplo. Um exemplo da escrita genial de um autor português, amado por uns e odiado por outros. Até aceito que não gostem; desconhecê-lo é que é uma grande perda.


O fim do mundo

Isto pode ter acabado mas não sou tão parvo que vá chorar à tua frente. Pelo contrário: apareço-te com um sorriso como se não fosse nada, sento-me à mesa, ponho o guardanapo ao pescoço por causa dos salpicos na camisa
(a minha mãe, coitada, que já vê mal, vê-se grega com as nódoas)
digo
-Boa noite Manuela
e como a sopa até ao fim, a falar disto e daquilo, sem dar a entender que estou triste, que tenho um nó na garganta, que sinto a minha vida em cacos porque juro-te que não sou tão parvo que vá chorar à tua frente. Tu levantas-te, tiras-me a colher, pões o meu prato em cima do teu, trazes o arroz de coelho da cozinha e eu a abrir uma garrafa de cerveja que às vezes sempre ajuda um bocadinho a dissolver a tristeza e o nó na garganta e enquanto me sirvo do arroz fico à espera que me fales do Carlos.
No fundo pode ser que a culpa seja minha por adiar constantemente o casamento contigo, vir aqui às segundas e às quintas e ir-me embora à uma da manhã com a desculpa de que a velhota precisa da minha ajuda, que com a idade deixa a porta aberta e se esquece do gás, que sou filho único e só me tem a mim quando a verdade é que os compromissos me assustam, me assusta a ideia de quereres ter crianças
(não tenho jeito nenhum para crianças)
e com tantas desculpas e tantos adiamentos era mais que certo que acabavas por te cansar e se não fosse o Carlos era outro, o Carlos pelo menos é um rapaz sossegado, gosta de ti, a mãe dele é quinze anos mais nova do que a minha e tem uma saúde de ferro e uma mulher não pode passar a vida inteira à espera que um fulano se decida, passar a maior parte das noites sem companhia, a ver vídeos na televisão, uma mulher precisa de companhia, de conversar, de um homem para tomar conta e eu não sirvo para isso, Manuela, levo o serão a olhar para o relógio com receio de perder o barco, despeço-me à pressa com um beijo na testa, telefono de fugida do emprego até que na semana passada me avisaste
-Preciso imenso de falar contigo
e eu entendi que me querias explicar que o Carlos estava disposto a dar-te o que eu nunca te dei, que não ligava com o teu feitio ficares sozinha, ires sozinha à praia, ires sozinha ao cinema, aguentar as anginas sem ninguém ao pé, oiço a minha voz
-O coelho está óptimo
farto de saber que não era isso que tu querias ouvir, farto de saber que o que querias ouvir era
-Eu caso-me contigo esquece o Carlos
mas não consigo, não sou capaz, gosto de ti e no entanto não me vejo, percebes, a viver contigo, o amor é uma coisa tão esquisita Manuela, garanto-te que tenho amor por ti, garanto-te que adorava pegar-te na mão
-Eu caso-me contigo esquece o Carlos
e as palavras não saem, tu à espera e as palavras não saem, tu a garantires-me em silêncio
-Se ficares quero lá saber do Carlos
e tudo o que sou capaz, que idiotice, é elogiar-te o coelho em lugar de elogiar-te a ti, te pegar na mão, te jurar
-Amo-te
porque te amo, porque não conheço quem faça macramé tão bem, quem tenha a casa tão limpa, a roupa tão asseada, nem um grão de pó na mobília, não conheço quem me trate como tu me tratas, acho que o Carlos tem uma sorte danada, acho que vou sentir a tua falta a doer-me cá dentro e todavia não sou tão parvo que vá chorar à tua frente, falo contigo como se não fosse nada, enfio o guardanapo na argola, levanto-me, abotoo o casaco e tu
-Preciso imenso de falar contigo
eu, que não sou tão parvo que vá chorar à tua frente, a agarrar a maçaneta da porta
-Amanhã amanhã
sabendo perfeitamente que não vou vir amanhã, que não vou vir nunca mais, que se viesse encontrava a mesa posta e o Carlos sentado no meu lugar a comer o meu arroz de coelho e a propor-te
-Vamos tratar da papelada no registo
sabendo perfeitamente que daqui a dois ou três meses vou espreitar ao jardim da Gulbenkian, e lá estarão vocês e os padrinho a tirarem fotografias junto à estátua, junto ao lago, e pode ser que me vejas, Manuela, que me distingas no meio dos arbustos, pode ser que olhes para mim como agora olhas
-Preciso imenso de falar contigo
só que não dirás nada porque é tarde, não podes passar o resto da vida a ires sozinha à praia, ao cinema, a aguentar as anginas sem ninguém ao pé, talvez me acenes, talvez eu te acene e apanhe logo o autocarro porque a velhota necessita de mim, com a idade deixa a porta aberta e esquece-se do gás, ao entrar a minha mãe, preocupada
-Vens pálido Jorginho
eu muito depressa
-Não é nada mãe
e sento-me no quintal das traseiras até ser noite e sem chorar, claro, não sou tão parvo que comece a chorar, que mariquice chorar, eu não choro, não penses que choro, não choro, sento-me no quintal das traseiras a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas.

4 Comentários:

Às domingo, outubro 17, 2004 6:34:00 da tarde , Blogger Miguel Fino disse...

Bem, nada a dizer. Bom, muito bom. A coisa que mais me impressionou foi o ritmo de escrita, ou pelo menos aquele frio que se sente ao querer galopar linha após linha para chegar ao fim e ver como isto acaba. Isso mostra que o escritor consegue incutir alguma tensão no leitor e é isso que diferencia aqueles que escrevem daqueles que escrevem bem...deixa-me lá ler isso, venha daí esse livro! Ele é bom Vera, tinhas razão.

 
Às domingo, outubro 17, 2004 11:01:00 da tarde , Blogger Unknown disse...

Muita angústia...é do que eu gosto. Agora tenho mesmo que comprar algo do "Hannibal".

 
Às segunda-feira, outubro 18, 2004 7:26:00 da tarde , Blogger vera disse...

Missão cumprida! Com vocês os dois foi fácil, bastou uma crónica para vos convencer. Ou não fossem vocês duas pessoas cheias de bom senso... ;) Agora espero que comecem a lê-lo... o prazer é todo vosso!!
Ah... afinal não me importo assim tanto que lhe chames hannibal, João. Gosto de ver o lado mais 'lírico' e metafórico das coisas: ele devora as pessoas com a sua escrita, pelo modo com os seus retratos são absorventes, parece que se fixa numa personagem e a consome nas palavras. Assim sendo, permito que o trates assim... lol

 
Às segunda-feira, fevereiro 05, 2007 8:01:00 da manhã , Anonymous Anónimo disse...

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