segunda-feira, julho 04, 2005

Crónica dos Bons Malandros - o livro e o filme



Em 1980, Mário Zambujal, jornalista e escritor, escreveu Crónica dos Bons Malandros. Em 1984, Fernando Lopes, realizador, adaptou a obra literária de Zambujal ao cinema, resultando essa adaptação num dos filmes portugueses mais vistos, sobretudo devido ao sucesso do livro e pela popularidade do elenco que integrava nomes como Nicolau Breyner, Maria do Céu Guerra ou Lia Gama.

A crónica relata uma história simples: um gang de ladrões portugueses, habituado a pequenos assaltos, é contratado por um elemento da máfia italiana roubar algumas jóias em exposição no Museu Gulbenkian. O assalto é, de facto, a acção principal da história. No entanto, é algo que só ocupa as últimas páginas do livro e os últimos minutos do filme. Quanto ao que está para trás, cada um dos capítulos tem por título o nome de uma personagem e é dedicado a um flashback da sua vida, em sucessivos exercícios de contextualização de uma acção que acaba por tornar-se quase secundária, embora seja o motivo para tudo o que a antecede.

Em termos de sequencialidade narrativa, “Crónica dos Bons Malandros” é uma obra pouco convencional uma vez que início, meio e fim da acção principal não correspondem ao início, meio e fim da obra (nem da literária nem da cinematográfica). Este carácter fragmentário torna o texto de Mário Zambujal numa difícil adaptação ao cinema, dado que é um conjunto de pequenas retrospectivas que apenas confluem no epílogo do assalto ao Museu Gulbenkian.

No entanto, e apesar de o filme, em termos de realização, ficar um pouco aquém da restante filmografia de Fernando Lopes, não deixa de ser uma boa adaptação. É certo que a qualidade de uma adaptação cinematográfica não se mede pelo grau de fidelidade ao texto literário. No entanto, há vários elementos que fazem do filme uma adaptação bem sucedida.

Em primeiro lugar, é importante referir que ambas as criações artísticas cumpriram uma (senão mesmo a principal) das suas funções: registar um retrato da sua época, do que foi a década de 80 em Portugal.

Tanto o livro como o filme desmascaram completamente os códigos convencionais de ambas as artes, assumindo ao leitor/espectador a consciência de serem obras, de serem documentos. No livro, expressões como «não esconderemos aos leitores» (Zambujal, 1999:90); «o primeiro revólver com punho de madre-pérola que nos aparece nesta história» (Zambujal, 1999: 141) ou «muitos outros não referidos porque este livrinho não pretende ser a lista classificada» (Zambujal, 1999: 119) marcam vincadamente a consciência do livro enquanto objecto e enquanto exercício de ficção.

Há certos elementos que aproximam este filme dos padrões convencionais até de uma tragédia, como o prenúncio dado pelo desmoronamento do castelo de cartas e a imagem das chamas ou mesmo pela sensualidade da personagem de Marlene, personificando a femme fatale, ora vestida de vermelho, ora tomando banho, sempre simbolizando a sensualidade feminina.

“Crónica dos Bons Malandros” é também um filme de transição: transição no percurso de Fernando Lopes, transição no caminho do cinema português e do próprio país, dez anos depois do 25 de Abril. É, indubitavelmente, um filme diferente e pouco convencional. Fernando Lopes queria fazer um musical e viu na adaptação do livro de Mário Zambujal a oportunidade para concretizar esse desejo. Para além disso, a visão do livro de Zambujal como uma boa adaptação foi adensada pelo sucesso do filme “Kilas, o mau da fita” (1981) de José Fonseca e Costa, um retrato algo semelhante ao das personagens do livro, recorrendo também ao uso de estereótipos.

A acção final de “Crónica dos Bons Malandros” situa-se, como já foi dito, no fim das obras que a relatam. A Fundação Calouste Gulbenkian, dias antes do dia marcado para as filmagens da sequência do assalto, indeferiu o pedido de Fernando Lopes para filmar no Museu. Por esse motivo, Lopes socorreu-se de uma outra ideia que já tinha tido e adicionou um elemento diferente ao filme: a sequência do assalto é feita em estilo de videojogo.

Aquilo que começou por ser um contratempo (e que, sem dúvida, não deixa de ser visto como tal), acabou por revelar-se também mais um elemento que afasta este filme dos códigos convencionais. Mais do que dar originalidade ao filme, este elemento, como outros, é uma marca de uma referência narrativa popular que acaba por enquadrar-se perfeitamente quer no texto de Zambujal quer na adaptação de Fernando Lopes.

Para além do videojogo, o realizador incluiu outras referências de narrativa populares como os robertos, o circo, a banda desenhada, o relato de futebol (sincronizado com a fuga de Silvino), as pinturas de parede, os intertítulos (a lembrar o cinema mudo) e a comédia musical, chave de definição do próprio filme. Todos estes elementos se enquadram no universo popular a que ambas as obras correspondem.

Ainda assim, apesar das condicionantes, esta nova forma de mostrar o roubo, simultaneamente não o mostrando, funciona como uma elipse de algo fundamental para a acção. Este carácter elíptico encontra-se também noutros filmes de Fernando Lopes, como é o caso de “Uma Abelha na Chuva”, onde quase todo o filme é uma elipse.

“Crónica dos Bons Malandros” é um filme experimental e, por isso, necessariamente incompleto. Longe de ser a obra-prima de Fernando Lopes ou de deixar uma marca indelével no cinema português, este filme não deixa de ter o grande mérito de, não sendo um grande filme, ser um retrato fiel da sociedade portuguesa dos anos 80 e uma boa adaptação de uma obra literária portuguesa de grande sucesso.

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